terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Viana & Camilo 008

Camilo e os irmãos Barbosa e Silva [07]


A amizade entre Camilo Castelo Branco e José Barbosa e Silva foi-se estreitando, como já referi em post anterior, ao longo dos anos. Nem sempre, porém, com a mesma intensidade. Aos pedidos de socorro nas aflições económicas, sobretudo durante o ano de 1950, e para o financiamento (e compra, em parte) da primeira edição de Um Livro (1854), Camilo foi correspondendo com palavras amáveis de reconhecimento e gratidão, mas também com apoios e incentivos às incipientes produções literárias do amigo de Viana. Aliás, também Camilo, no início das suas relações com o Barbosa e Silva, ainda não gozava do nome que depois veio a alcançar, com justiça, na literatura portuguesa. Então, não passaria de um “jornalista literário” e de um aspirante a poeta, mais conhecido pela sua vida noturna de boémio, de romântico aventureiro e extravagante.

Camilo publicou e/ou apadrinhou, todavia, os «primeiro balbuceios poéticos» de José Barbosa e Silva, em vários jornais, conforme se mostra no quadro seguinte, segundo regista Alexandre Cabral [1984 (I): 35]:

Poema
Data
(Mês, Ano)
Jornal
Título
N.º
Páginas
Um Adeus de Amigo
Junho, 1850
A Semana1
24
191-192
Não Chores
»
»
25
200
Saudades…
»
»
29
231-232
No Álbum do meu Prezado Amigo
J. A. Pinto de Magalhães
Agosto, 1850
»
31
248
O meu repouso
Setembro, 1850
»
35
279-280
Que me queres?
Outubro, 1850
»
41
382
A minha crença
Maio, 1853
A Cruz2
19
Sem indicação
A uma cruz
Julho, 1853
»
30
Sem indicação
1 A Semana foi um jornal de Lisboa que começou a ser publicado em janeiro de 1850. Camilo foi um dos seus principais colaboradores, com textos em prosa e verso, sobretudo durante o ano de 1850. Foi nele que veio a público, em folhetins e também em separata, parte do primeiro romance, Anátema, depois. Em volume, no Porto, no ano de 1851. Neste ano, António da Silva Túlio assume o cargo de diretor de A Semana e Camilo deixa de figurar nas colunas do jornal. Entre ambos, gerou-se acesa polémica, com ataques e contra-ataques, no mesmo semanário. [Cf. Cabral, 1989: 594-5 e 32; 1981 (II): 101-112 e Barbosa, 1919: 103-4149-157]
2 A Cruz foi um «semanário religioso», de que Camilo foi redator, juntamente com Augusto Soromenho. O primeiro número saiu em 08-01-53. Observa Cabral que, neste periódico, se encontram poesias de José Barbosa e Silva, «com apresentação do romancista.» [Cabral, 1989: 225]

Camilo nunca faltou, por outro lado, com estímulos ao amigo, para que escrevesse e publicasse. Ao mesmo tempo, seguia-lhe, com interesse e atenção, os textos que ele ia publicando, entretanto, noutros periódicos.
Vejamos como este interesse se manifesta na correspondência que Camilo escreveu ao benjamim dos Barbosa e Silva, ao longo do ano de 1851.
Em carta de 16-III, primeira deste ano, escreve, depois de se queixar que tem «apenas um symptoma» da existência do amigo – «os teus escritos»:

«Eu admiro o teu ultimo folhetim – Não te perdõo o mysterio do nome. Divulguei-o, p[o]r que havia interesse em conhecel-o. Tenho pena, porem, q[ue] escrevas no N[acional] onde actualmente rabiscam graves pulhas. Se quizesses escrever nos folhetins do Jornal do P[ovo] – p[o]r ventura o unico soffrivel d’aquelle nome, deverias enviar-me os manuscriptos. O teu passeio á Italia em q[ue] ficou? Matou-te a preguiça as inspiraçoens?» [Barbosa, 1919: 102-3. Também em Cabral, 1984 (I): 50 e 51]

Pressente-se, nesta carta, ter havido um esfriamento na amizade entre ambos. O silêncio de Barbosa e Silva não se deverá apenas à viagem pela Europa. Talvez pretendesse também um relativo afastamento de Camilo. Recorde-se que, até à data desta, das 10 cartas enviadas ao amigo de Viana, em seis (pelo menos) pedia-lhe dinheiro (ver Camilo & Viana 005). Repare-se, ainda, como termina a carta: «Se me responderes, serei depois mais massador, queres?» Se me responderes… mais massador… É provável que Barbosa e Silva não estivesse mais disposto a ser «cravado» por Camilo, gastador compulsivo, ao que parece.
É o escritor, por isso, que toma a iniciativa da reaproximação. Sabe da chegada de Barbosa e Silva apenas pelos escritos que o amigo publicava n’O Nacional, jornal portuense onde Camilo também assinava folhetins. Fora, aliás, um dos seus colaboradores mais regulares e durante mais tempo, «apesar de “arrufos” ocasionais» [Cabral, 1989: 436], devido, certamente, aos tais pulhas que nele rabiscavam. Camilo escrevia, ao mesmo tempo, no Jornal do Povo, outro periódico portuense, mas de tendência política («cartista»), adversária da tendência («liberal/progressista») d’O Nacional. Compreende-se, por isso, que o jornalista Camilo assinasse seus folhetins, no Jornal do Povo, «usando quase sempre pseudónimos». Dois deles foram Anastácio das Lombrigas e Anacleto dos Coentros. [Cabral, 1989: 340]

Retomando as relações entre Camilo e Barbosa e Silva, verifica-se que a frieza deu lugar, com a reaproximação, a manifestações de felicidade e reconhecimento, bem patente logo no início da carta seguinte, datada do Porto, 20-IV-1851.

«Meu caro Barbosa

Não te direi por que não posso o prazer que da tua carta senti. Basta dizer-te – que a tua imagem para mim é alguma cousa superior às cousas do mundo – És um ideal de amizade e de protecção para CCB –
Quem me disse que os artigos eram teus – foi um destes palpites literários que nunca me mentem. Adivinhei. Depois o Basto confirmou. Não se poderá saber quem é a Violeta!? É um ente de imaginação… um sonho… uma evaporação da tua alma tão poeta!? Diz [.] / […]» {Cabral, 1984 (I): 52-53. Não consta em Barbosa, 1919. Barbosa e Silva respondeu à carta de 16/03 de Camilo, no dia 30 do mesmo mês, de Lisboa, onde continuava a viver. Camilo havia já regressado ao Porto. Ambos tinham vivido e convivido na capital, durante largos meses, em 1850. «Camilo na labuta das letras e José Barbosa a flanar pelos meios aristocratizantes». [Cabral, 1984 (I): 35]}

Alexandre Cabral é de opinião que o «folhetim» e/ou «artigos» de José Barbosa e Silva, a que se refere Camilo, nestas duas cartas, dizem respeito ao romance «Cenas Contemporâneas da vida íntima de Lisboa / Os Bailes», «em curso de publicação n’O Nacional», da autoria de Barbosa e Silva, apesar de publicado «sem qualquer assinatura». [1984 (I): 52]
Foi a «referência à Violeta [na carta de 20-IV-51] – comenta depois Cabral – que nos elucidou quanto à autoria das Cenas contemporâneas da vida íntima de Lisboa / Os Bailes […]. De facto, Violeta é uma personagem do romance. No capítulo VII (O Nacional, n.º 76, de 2/IV/1851), há esta passagem: / “Entretanto Violeta me contemplava com a força da desesperação; havia já duas horas que eu a castigava impiamente com uma indiferença insultante!”» [Cabral, 1984 (I): 53]

Na carta seguinte, datada do Porto, 17/V/51, Camilo não se refere à atividade literária do amigo de Viana. Envia-lhe, todavia, oito exemplares do livro Inspiraçoens, para que o distribua, «a fim de que algum teu amigo diga alguma cousa bem ou mal. Como estás amigo com os litteratos da Semana lembro-te estes.» [Barbosa, 1919: 1033. Esta carta encontra-se também em Cabral, 1984 (I): 54. Este investigador, porém, transcreve uma «NB», omissa pelo sobrinho de Barbosa e Silva, Luís Xavier Barbosa, nas Cem Cartas de Camilo (1919). Nela, Camilo pede ao amigo vianês uma receção condigna para Rodriguez de Fuentes, «filho do cônsul espanhol» e «portador» da carta. Referir-me-ei a este cavalheiro, em post(s) futuro(s), quando abordar textos (duas narrativas), em que Camilo se refere aos trágicos amores do casal Fanny Owen / José Augusto Pinto de Magalhães, onde se encontram referidos José Barbosa e Silva, num, como interlocutor, e, noutro, Viana do Castelo.]

E Inspiraçoens, que livro é?
É uma coletânea de poemas. Vinte e seis, seguidos de um «Protesto», em prosa. Publicado em 1851, o livro é composto, na totalidade, por poemas que Camilo tinha já dado a lume em vários jornais, incluindo em A Semana. E, em 1854, voltou a incluí-los, à exceção de «Tentação», na edição de Duas Ephocas na Vida (rosto; na capa está da Vida). Dois destes poemas – «As lamentações de Jeremias» e «O templo» – voltou a publicá-los, anos depois, n’A Aurora do Lima. O primeiro no n.º 195, de 08/IV/57; o segundo no n.º 341, de 31/III/58. Referir-me-ei, a estes dois poemas, com maior e melhor atenção, quando tratar da colaboração de Camilo n’A Aurora do Lima.
Em Inspirações, os dois referidos poemas encontram-se nas páginas 56 a 63 e, em Duas Épocas na Vida, nas páginas 174 a 182. Neste último livro, Camilo não apresenta prefácio nem posfácio, dividindo-o, porém, em duas partes distintas: «Preceitos do Coração» (pp. 1-126) e «Preceitos da Consciência» (129-243), que depois, em 1865, saíram em edições autónomas. Também em Duas Épocas o autor reúne poemas já publicados em periódicos.

Inspirações é constituído por um conjunto de «trovas», onde, segundo o próprio autor confessa no «Protesto», um «mesmo pensamento» as percorre e domina: «a desgraça moral – o desgosto profundo, o peso da vida.» Prevenindo-se, entretanto, contra o eventual silêncio da crítica, escreve:

«Se ámanhã me disserem que nada prestam estas paginas copiadas da minha alma – esta revellação confusa dos meus insondaveis mysterios – eu não maldigo o meu livro nem choro morta alguma das minhas desvanecidas esperanças. / Nada espero d’aqui. / Bem longe d’estrear-me para melhor fortuna em novos versos, eu protesto e juro ao leitor, sob a mais sancta das minhas crenças no céo – já que d’outras não tenho – que não verá já mais poesia minha. / A crytica deve levar-me em saldo de conta este serio juramento, se em má hora vier, armada d’armas negras, pôr-me fóra do glorioso torneio dos poetas. / Fóra já eu estou, e parece-me que estava há muito.»

E termina, protestando com estas palavras:

«Estas minhas inspirações gemiam agonisantes no seu trespasse para o silencio, que é a morte do poeta. / Morreram, e eu morri com ellas.» [Branco, 1851: 131-2]

Como sabemos (ver Camilo & Viana 007), independentemente da boa ou receção de Inspirações pelos críticos, Camilo nunca deixou de poetar, até ao fim da vida. Juras e protestos vãos. Quem há de acreditar nestes incorrigíveis fingidores, Fernando Pessoas?...

Há uma questão que aqui se deve pôr: por que raio havia Camilo de pedir ao amigo de Viana uma "cunha" junto dos «litteratos da Semana», para que eles falassem, bem ou mal, de Inspirações? Quando se sabe que o escritor tinha sido, «durante o ano de 1850, o principal redactor» do semanário. [Cabral, 1981 (II): 101] Mais: quando se sabe que, em A Semana, além de parte do Anátema, como vimos, tinha publicado também várias poesias, incluídas agora no volume.
Xavier Barbosa é de opinião que «ponderadas […] as contrariedades que sobrevieram» à estreita da publicação de Anátema, «salientando-se Silva Túlio, que em 1851 dirigia a Semana,  pela forma aggressiva e violenta com que em successivos artigos do 2.° vol. da revista (pag.s 311, 312, 340 e 350) flagellou o novel romancista», Camillo viu «conveniência» em «remetter os exemplares das suas  Inspirações  por intermédio de José Barbosa». [Barbosa, 1919, nota 2: 103-4. Os textos desta polémica e sua contextualização encontram-se em Cabral, 1981 (II): 101-112]

A última carta que, em 1851, datável de 13/XI, Camilo escreveu ao seu dileto amigo vianês é a seguinte (omite-se saudação inicial):

«[…] // Parabens pela tua feliz chegada aos braços de tua fam[íli]a. Deves trazer o coração a transbordar d’inspiraçoens, e não prives o publico do m[ui]to que pódes communicar-lhe de tuas impressoens. Felicito-te pelo honroso encargo, que tens.  É pena q[ue] estejas ligado a estes inimigos de Portugal, mas pódes, sem incorrer nos defeitos britanicos, utilisar m[ui]to á tua patria, e desempenhar, como espero, as missões q[ue] te couberem.
Estudo Theologia – e no S. Lazaro tenciono tomar subdiácono. Aqui tens a m[inh]a vida em duas linhas. Fujo de recordar o passado, e pesso a D[eu]s coragem para me considerar um homem diverso, mas sempre obrig[adíssi]mo am[ig]o // C. C. Br.co» [Barbosa, 1919: 104. Também em Cabral, 1984 (I): 55]

José Barbosa e Silva – informa o sobrinho Luís Xavier – regressara «da visita que fez á exposição de Londres.» [Barbosa, 1919, nota3: 104] Camilo, sabendo do regresso do amigo, possivelmente através da imprensa, incentiva-o a que comunique ao público as impressões que traz de Inglaterra, de onde teria chegado com o coração a transbordar de inspirações. Se o fez, é capaz de ter acontecido, mas isso ficará para a correspondência que Camilo enviou ao seu amigo de Viana, em 1852.
Quanto ao desgosto da ligação de Barbosa e Silva aos ingleses, ainda não encontrei motivo para Camilo os considerar «inimigos de Portugal». Quanto à nova tentativa de ser padre, deu naquilo que só podia dar – vocação falhada – porque outras tentações mais poderosas atraíam este homem inquieto, de corpo e espírito.


Leituras:
BRANCO, Camilo Castelo, 1851: Anathema. Lisboa:
----------, 1851: Inspirações. Porto: Typographia de J. J. Gonçalves Basto.
----------, 1854: Duas Epochas na/da Vida. Porto: Typographia de A. S. dos Santos.
BARBOSA, Luís Xavier, 1919: Cem Cartas de Camilo. Lisboa: Portugal-Brasil Limitada, Sociedade Editora.
CABRAL, Alexandre, 1981: Polémicas de Camilo Castelo Branco (vol. II). Lisboa: Horizonte.
----------, 1984: Correspondência de Camilo Castelo Branco com os Irmãos Barbosa e Silva (vol. I). Lisboa: Horizonte.
----------, 1984a: Correspondência de Camilo Castelo Branco com os Irmãos Barbosa e Silva e com Sebastião de Sousa (vol. II). Lisboa: Horizonte.
----------, 1989: Dicionário de Camilo Castelo Branco. Lisboa: Caminho (2.ª ed.: 2003).

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